i. prólogo
Le décollage du ZYX24 é uma fotografia de Jacques-Henri
Lartigue tirada em Rouzat, França, em 1911. O ZYX24 fazia parte de uma série de
pequenos protótipos de aviões-planadores criados pelo inventor Francês Zissou.
Ao fim de 23 modelos e 23 tentativas praticamente falhadas Zissou conseguiu
levantar os seus pés da terra e voar. É este pequeno e fugaz momento que
Lartigue capta com a sua lente. Mas um momento que tem tanto de fugaz como
decisivo. Dois mil anos depois das imagens voadoras de Platão pela Terra,
Lartigue e Zissou voltam a reconstruir essa mesma evidência: imagem e voo são uma e a mesma coisa e
nunca deixaram de estar separadas.
ii. Imagem e voo
Nessa manhã de Rouzat, esquecida na
ousadia e na investida da sua própria invenção escreve-se, ainda tão
fragilmente, um dos eventos inaugurais da modernidade. Nesse sobressalto em
direcção ao vento, à boleia do ZYX24, Lartigue e Zissou construíam
silenciosamente o impossível. Zissou abre o céu (e o espaço) à experiência
física do homem e Lartigue abre a profundidade oculta da imagem (e do tempo).
Isto é, a concretização da viagem no espaço através do salto epistemológico do
voo e a realização da viagem no tempo através do domínio instantâneo da imagem
e da duplicação do mundo . Irreversivelmente conquistados, céu e imagem nunca mais
serão os mesmos. Espaço e tempo serão definitivamente outros. Imagem e voo
coincidem aqui na sua abertura derradeira ao homem, irrompem (n)a modernidade e
inauguram definitivamente o século XX. Mas asseguram-nos e reconstroem, também,
o próprio fundamento poético da imagem: o
voo. Imagem
e voo são ambos a
construção de uma representação poética e utópica do mundo. Mas não se trata
apenas de ver a realidade a partir de um outro ponto de vista nem de ver a
unidade, talvez, impossível do mundo (quanto mais longe e distante a Terra,
mais dominável). Mas sim, ver o lado inacessível da Terra que significa, por
sua vez, ver o outro lado do outro, o ver-se a si mesmo enquanto se olha .
A imagem é, acima de tudo, um voo
indiscreto por entre a realidade, mas só será realmente imagem, se tiver essa
capacidade de levantar voo e se esgueirar por entre o mundo, oferecer ao homem
a possibilidade de uma outra visão, de uma reinterpretação do mundo. Não nos
confundamos, a imagem só se constituirá como imagem se, de facto, tiver a
capacidade de lançar o homem no mundo, de abrir novas fissuras por entre o
espaço para uma nova visão e compreensão da realidade. Tudo o resto serão
apenas projecções, frames ilusionais e véus opacos lançados contra a realidade.
Mas o reflexo da cena, esse momento em que os pés de Zissou saltam
derradeiramente em direcção ao tempo e ao espaço, produzido na câmara de
Lartigue relembra-nos, ainda, essa inevitabilidade filosófica: voarmos em
direcção ao mundo é, também, voarmos em direcção a nós próprios. Partir para o
(re)conhecimento do mundo é partir para um (re)conhecimento de nós próprios. A
fotografia não mostra apenas a insustentável leveza desse avião, mostra-nos o
homem. O homem em busca do seu próprio voo epistemológico. É essa a possibilidade
filosófica do ZYX24.
iii. Décollage
Italo Calvino diz que a literatura
só sobreviverá propondo-se a objectivos desmedidos, “empresas que mais ninguém
ouse imaginar” [Calvino, 2006]. Mas não será esse também o objectivo da
arquitectura? Propor-se não como disciplina especializada e fechada, mas
construir-se a partir de uma “visão plural e multifacetada do mundo” [Calvino,
2006]. Propor-se à essa fabricação poética de imagens, essas imagens vitais que
outrora foram produzidas pelos antigos Gregos. Como escreve e define
lapidarmente Bragança de Miranda, agora dois mil e quatrocentos anos depois das
primeiras descrições da Terra vista do espaço, feitas por Platão, agora que já
vemos a Terra a partir das escotilhas das estações orbitais: "(…) basta para isso não fazer pior do que os
poetas antigos, eles que maravilharam a physis com imagens impossíveis, mas
vitais: a do voo, da imortalidade, dos milagres. Como disse Rothko, «o
propósito da arte em geral é criar novos valores para pôr a humanidade frente a
frente como um novo acontecimento, uma nova maravilha»".
[Bragança de Miranda, 2005]
Na continuidade poética vitruviana
do corpo no mundo e da palavra a fecundar a pedra, é essa a possibilidade
poética da arquitectura provocar hipóteses (voos) e maquinar desejos (imagens).
E, por isso, resta-nos fazer como esse singelo avião, o ZYX24, captado pela
lente de Jacques-Henri Lartigue há quase cem anos atrás: (ir)romper as
barreiras do espaço e do tempo (do voo e da imagem), tentar e ensaiar novas
formas de nos suspendermos sobre a realidade, criar novos valores e pôr a
humanidade frente a frente com um novo acontecimento.
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i.
“(...) Al poblar este mundo ya abarrotado con su duplicado de imágenes, la
fotografía nos persuade de que el mundo es más accesible de lo que en verdade
es”. Susan Sontag, cit. in
Juhani Pallasmaa, Los Ojos De La Piel, GG, Barcelona, 2006.
ii. Como escreve o filósofo Alemão Peter Sloterdijk,
os “olhos são o protótipo orgânico da filosofia. O seu enigma consiste que não
só podem ver, como também se podem ver a si mesmos vendo”. Sloterdijk, Critica
da Razão Cínica, Siruela, Madrid, 2003.
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Italo CALVINO, Seis propostas para o próximo
milénio, Lisboa, Teorema, 2006.
José Bragança de MIRANDA «Geografias – Imaginário e controlo da Terra» in José
Bragança dee MIRANDA, Eduardo Prado COELHO (eds.), Espaços. Revista de
Comunicações e linguagens, Lisboa, Relógio de Água, 2005.